Relatos históricos dão conta de que um dos debates dos primeiros missionários cristãos a pisar nestas terras “além mar” era sobre a possibilidade ou não dos povos originários (então índios) serem portadores de alma. No caso negativo não justificaria sua missão de catequizá-los. E a discussão se ampliou pela constatação de que eram povos sem religião.
Na antropologia, alguns séculos à frente, surgiu a interpretação de que as primeiras manifestações religiosas se deram quando os ancestrais hominídeos passaram a enterrar seus mortos. Aí estaria implícita a constatação de que haveria vida para além da materialidade. Portanto, exigia também cuidados.
A ideia de sermos portadores de uma dimensão para além da “carne” ganhou força na história do pensamento humano. A morte compreendida como um horizonte de possibilidades. Elemento constitutivo da vida num processo de transição para outras dimensões, ou simplesmente uma passagem.
Neste final de semana agitam-se os movimentos nos cemitérios. No calendário cristão é sinalizado como o “dia das almas”. O carinho para com as pessoas que deixaram suas marcas transforma-se num gesto de carinho com o espaço em que os corpos foram depositados. As sepulturas são lavadas e pintadas. O espaço é invadido por flores que trazem um colorido impactante.
O que fica demarcado é a convicção de que nós, humanos, nos diferenciamos dos demais seres que dividem esta casa comum do universo. Manifestamos nossa crença num ato de esperança para além da materialidade. Carregamos o poder do imaginário, algo comum e ao mesmo tempo fator de divergências.
A chacina e abandono de corpos na cidade maravilhosa, mais de uma centena, provoca um sério questionamento: de um lado um ”governo” que anuncia uma operação de sucesso ao eliminar corpos indesejados. De outro, uma população que recolhe “carnes” violentadas com a convicção de que merecem ser cuidadas porque a vida não é finita.
Quem são os desalmados de hoje?