Iniciativa da Prefeitura e parceria com entidade de Porto Alegre levantam questionamentos sobre transparência, localização e modelo de acolhimento para pessoas em situação de rua.

Nos últimos meses, a implantação da Casa de Passagem para pessoas em situação de rua em Torres desencadeou um debate intenso que envolveu vereadores, comunidade escolar, Prefeitura e uma entidade parceira de Porto Alegre. O projeto, previsto em lei federal e respaldado por uma ação civil pública que obrigava o município a estruturar o serviço, acabou se transformando em uma pauta de divergências.
De um lado, a administração municipal defende que a iniciativa é um passo necessário para garantir dignidade, acolhimento temporário e reinserção social de pessoas que vivem nas ruas. De outro, pais de alunos de escolas próximas à unidade levantam preocupações sobre segurança, enquanto vereadores questionam a transparência na condução do processo e a escolha do local para funcionamento.
A reportagem que segue apresenta os diferentes pontos de vista, os documentos oficiais que sustentam a parceria e as críticas levantadas, compondo um retrato amplo sobre a polêmica que tomou conta da cidade.
COMO TUDO COMEÇOU
Um vídeo gravado pelos vereadores Gibraltar Vidal (Gimi) e Carla Daitx gerou polêmica ao levantar questionamentos sobre a recém-inaugurada Casa de Passagem em Torres. No registro, ambos destacam dúvidas sobre a política de acolhimento social.
Após a divulgação, os parlamentares visitaram a Casa de Passagem e constataram que o espaço ainda não está totalmente pronto, com quartos e cozinha inacabados, falta de camas e ausência de acessibilidade, comprometendo o atendimento a pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Eles reforçaram que o objetivo não é impedir a criação do serviço, mas assegurar transparência e condições adequadas para acolhimento da população vulnerável.
A situação levou a Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores a acompanhar de perto o caso, solicitando informações detalhadas sobre funcionamento, valores, capacidade de atendimento e regulamento interno do espaço, que estabelece direitos, deveres e regras de permanência dos usuários.
A MOBILIZAÇÃO DA COMUNIDADE ESCOLAR
Enquanto vereadores questionavam a transparência e a estrutura da Casa de Passagem, a comunidade escolar próxima ao local também começou a se mobilizar. Pais de alunos de escolas que ficam nas redondezas, como a Escola Estadual de Educação Básica Marcílio Dias, ESCOLA Estadual de Ensino Fundamental Professor Justino Alberto Tietboehl, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e uma escola infantil, manifestaram preocupação com a abertura da unidade justamente naquela região.
Entre os pais, a voz mais ativa tem sido a de Heloísa Valliatti, mãe de um menino de 8 anos que estuda no Tietboehl. Ela relatou que tomou conhecimento do assunto por meio de mensagens em grupos de amigos e pais de alunos.
“Uma conhecida minha me mandou uma mensagem dizendo que tinha ouvido falar na prefeitura sobre a abertura de uma casa de passagem para pessoas em situação de rua ali perto do Tietboehl. Eu não sabia de nada e resolvi buscar informações. Coloquei no grupo de pais e ninguém sabia. Então entrei em contato com alguns vereadores e pedi esclarecimentos”, contou Heloísa.
Segundo ela, a falta de informações claras aumentou a insegurança da comunidade. “Ficamos sabendo da confirmação só depois que os vereadores foram lá e mostraram que realmente seria do lado da escola”, relatou.
O ABAIXO-ASSINADO

Diante da confirmação, Heloísa e outros pais decidiram iniciar um abaixo-assinado pedindo que a Casa de Passagem fosse instalada em outro local. O documento, que rapidamente ganhou adesões, não rejeita a necessidade de acolher pessoas em situação de rua, mas questiona a localização escolhida.
“Nós não somos contra a abertura de uma casa que auxilie pessoas em situação de rua. Sabemos que elas também merecem uma segunda chance. O que não queremos é que seja ao lado das escolas. Muitas crianças vão e voltam a pé, sozinhas, e passam por ali. Também tivemos, recentemente, um caso grave envolvendo um morador de rua em Torres. Isso nos preocupa”, explicou.
Outro ponto levantado pelos pais é o fato de que, nas proximidades, já existe a antiga rodoviária da cidade, que segundo eles teria se transformado em um espaço de consumo de drogas e abrigo improvisado para pessoas em situação de vulnerabilidade. Para os pais, a soma desses fatores gera um risco maior para os estudantes.
Mais um ponto citado por pais é a falta de diálogo prévio da Prefeitura com a comunidade escolar. “Fomos pegos de surpresa, e isso cria desconfiança. O mínimo que se espera é que uma decisão dessa importância seja debatida com quem vai conviver diariamente com o serviço”, disse Heloísa Valliatti.
A RESPOSTA DA PREFEITURA
Em entrevista ao programa Revista Maristela, da Rádio Maristela, a secretária de Assistência Social e Direitos Humanos, Michele Brocca, explicou os fundamentos legais e sociais da criação da Casa de Passagem.
Segundo Michele, o município já estava sendo cobrado judicialmente para implantar o serviço.
“A Casa de Passagem é fruto de uma ação civil pública contra o município. Ela é um serviço socioassistencial previsto na política de assistência do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Mesmo sem a ação judicial, mais cedo ou mais tarde teríamos que implantar, porque é uma garantia em lei”, afirmou.
A secretária ressaltou que a gestão optou por uma parceria com uma Organização da Sociedade Civil (OSC) por meio de edital público, o que resultou na escolha da Associação Vivendo Atos 29, de Porto Alegre. A entidade, disse ela, já atua em diferentes municípios gaúchos com serviços similares e possui experiência consolidada na área.
Michele também destacou que o espaço terá regras claras de funcionamento, com limite de até 20 pessoas acolhidas por vez, além de equipe técnica formada por psicólogos, assistentes sociais e educadores sociais.
“Não é um espaço em que qualquer pessoa pode entrar e sair. Existe um regimento interno, horários e encaminhamento feito pela Assistência Social. Já temos acolhidos lá, e os educadores estão trabalhando nos encaminhamentos para saúde, documentação e mercado de trabalho”, explicou.
Para a secretária, a polêmica é natural em um primeiro momento, mas será superada conforme a comunidade conheça melhor o funcionamento do serviço.
O CONTRATO
A gestão da Casa de Passagem de Torres foi viabilizada por meio de um Termo de Colaboração nº 001/2025, assinado entre o município e a Associação Vivendo Atos 29, entidade com sede em Porto Alegre e experiência na execução de serviços socioassistenciais em diferentes cidades gaúchas. O documento tem como base a Lei Federal nº 13.019/2014, que regula as parcerias entre o poder público e organizações da sociedade civil, e foi formalizado após um processo de chamamento público.
O contrato tem vigência inicial de 12 meses, podendo ser prorrogado por até 60 meses mediante termo aditivo, conforme o interesse público. Durante esse período, a Prefeitura de Torres compromete-se a repassar mensalmente à entidade o valor de R$ 65.487,40, o que totaliza R$ 785.848,00 no ano.
Além dos repasses municipais, a Associação Vivendo Atos 29 deve oferecer uma contrapartida estimada em R$ 17.100,00, correspondente a bens e equipamentos necessários para o funcionamento do espaço. Entre os itens declarados estão 20 camas, 20 colchões, 20 roupeiros, um sofá, uma TV, uma geladeira, uma mesa de refeitório, cadeiras e armários de cozinha.
ESTRUTURA DE FUNCIONAMENTO


O plano prevê capacidade para 20 usuários por dia, funcionamento 24 horas e oferta de quatro refeições diárias (café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar).
A equipe mínima indicada inclui:
1 coordenador técnico (40h semanais, salário de R$ 5 mil);
1 psicólogo (30h, R$ 3.500,00);
1 assistente social (30h, R$ 3.500,00);
8 educadores sociais para plantões diurnos (44h, total de R$ 16 mil);
1 responsável administrativo para prestação de contas (44h, R$ 4.500,00).
Somente com pessoal, a despesa mensal estimada é de R$ 32.500,00, além de R$ 10.937,40 em materiais de consumo e cerca de R$ 4 mil em serviços terceirizados e aluguel.
QUEM É A RESPONSÁVEL PELA CASA
A execução da Casa de Passagem de Torres ficou a cargo da Associação Vivendo Atos 29, organização da sociedade civil criada em Porto Alegre e com atuação em diferentes cidades do Rio Grande do Sul. A entidade se especializa em serviços socioassistenciais de alta complexidade, voltados à proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade social, risco pessoal ou violação de direitos, gerenciando abrigos, casas de passagem, repúblicas sociais e centros de acolhimento em parceria com municípios, seguindo diretrizes do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Em Porto Alegre, a Associação mantém a Casa Oásis Atos 29, destinada a mulheres vítimas de violência doméstica, e o Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH). Na Região Metropolitana, opera serviços em Esteio e São Leopoldo, incluindo abrigos para imigrantes, refugiados e pessoas em situação de rua, com foco em autogestão e participação ativa dos usuários.
A entidade é dirigida por Renan de Lemos Ferreira, José Fernando Cunha Ferreira e Rosaura de Lemos Ferreira, sem vínculos políticos ou pendências legais. Para a Casa de Passagem em Torres, a Associação disponibilizou 20 camas, colchões, roupeiros, sofás e móveis básicos de cozinha e refeitório, totalizando R$ 17,1 mil em bens, garantindo a estrutura mínima necessária para o funcionamento do espaço.
O REGIMENTO INTERNO
Um dos principais documentos apresentados aos parlamentares foi o Regimento Interno da Casa de Passagem, que estabelece os direitos e deveres dos acolhidos.
Entre os pontos principais estão:
entrada e saída controladas, com horários definidos para evitar circulação desordenada;
proibição do consumo de álcool e drogas dentro da unidade;
permanência máxima conforme critérios estabelecidos pela Assistência Social, já que se trata de acolhimento temporário e não moradia;
acompanhamento obrigatório com equipe técnica (psicólogo, assistente social e educadores);
preservação da ordem e respeito às normas de convivência, sob pena de desligamento do usuário em caso de descumprimento.
OBJETIVO PRINCIPAL
De acordo com o Plano de Trabalho da entidade, a Casa de Passagem tem como objetivo oferecer acolhimento emergencial e temporário para adultos em situação de rua (de 18 a 59 anos) e, em situações específicas, para núcleos familiares. A ideia é garantir proteção integral, alimentação, apoio psicossocial, encaminhamento a serviços de saúde e assistência na reintegração familiar e comunitária.
O documento ressalta que Torres enfrenta um aumento contínuo da população em situação de rua. Dados do Cadastro Único de março de 2025 apontam a existência de 205 pessoas nessa condição, número que pode ultrapassar 100 durante a temporada de verão, devido à migração sazonal.