Home EspecialEntre a criminalidade e a vulnerabilidade, o perfil da população de rua em Torres

Entre a criminalidade e a vulnerabilidade, o perfil da população de rua em Torres

por Melissa Maciel

Histórico de crimes e vidas desestruturadas se misturam nas ruas, exigindo políticas públicas que equilibrem segurança e reinserção social.

Equipe do CREAS durante atendimento à população em situação de rua enfrenta desafios como dependência química e falta de moradia na busca reinserção social

Duas operações realizadas recentemente pela Brigada Militar de Torres, nos dias 06 e 13 de junho, traçam um cenário preocupante, a presença crescente de pessoas em situação de rua com passagens policias e, em sua maioria, vindas de fora do município. Ao todo, as duas ações resultaram em 35 abordagens: 21 pessoas em situação de rua foram identificadas na primeira operação (06/06), incluindo uma foragida da Justiça pelo crime de estupro de vulnerável, e outras 15 na segunda (13/06), das quais seis já haviam sido abordadas anteriormente.

Os dados levantados permitem traçar um perfil detalhado do grupo abordado. No entanto, esse perfil representa apenas 27,27% da população em situação de rua atualmente em Torres, conforme informações da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, que estima haver cerca de 110 pessoas vivendo nessas condições.

De acordo com o comandante da 2ª Companhia do 2º Batalhão de Policiamento em Áreas Turísticas (2ºBPAT), capitão Guilherme Hermeto Schneider, a Brigada Militar tem intensificado as ações de policiamento voltadas à preservação da ordem pública e ao enfrentamento de situações que geram insegurança no município.

A Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos de Torres estima haver cerca de 110 pessoas vivendo em situação de rua

“Além das abordagens diárias realizadas a pessoas em situação de rua, promovemos, nas duas últimas semanas, duas operações integradas com a Prefeitura Municipal. Verificamos que alguns dos abordados já haviam se envolvido em ocorrências policiais anteriores no município de Torres, depois se deslocaram para outras cidades, onde também foram registrados novos episódios delituosos e, mais recentemente, retornaram ao município”, relatou o comandante.

Segundo o capitão Schneider, a maioria das pessoas abordadas é oriunda de outros municípios e possui antecedentes criminais por diversos tipos de delitos. No entanto, ele enfatiza que “a mera existência de antecedentes não configura, por si só, fundamento legal para prisão, conforme estabelece a legislação vigente. A detenção somente é possível mediante mandado judicial em vigor ou em situação de flagrante delito”.

A Brigada Militar, conforme reforça o oficial, segue atuando “de forma técnica, responsável e em estrita observância à legalidade, mantendo constante cooperação com os demais órgãos públicos, com o objetivo de preservar a ordem, proteger a população e garantir a tranquilidade da comunidade de Torres”.

PERFIL DOS ABORDADOS

Dos 30 indivíduos identificados nas duas operações, apenas três são naturais de Torres, ou seja, apenas 10%. A grande maioria é de outras cidades, com destaque para Porto Alegre (8 pessoas), Novo Hamburgo (3), Capão da Canoa (2) e Cruz Alta (2). Também foram identificadas pessoas oriundas de Joinville, Xangri-Lá, Imbé, Viamão, Gramado, Canoas e até mesmo de outros países, como Chile, Uruguai e Argentina.

Essa movimentação, segundo informações das Operações realizadas, a maioria das pessoas abordadas chegaram à cidade menos de 6 meses, quando era alta temporada de verão, reforçando uma dinâmica migratória recorrente em cidades litorâneas, especialmente durante os meses de temperaturas mais amenas, em que pessoas em situação de vulnerabilidade buscam regiões turísticas com maior fluxo de transeuntes e, muitas vezes, mais tolerância à ocupação de espaços públicos.

Embora Torres não tenha um Centro POP, o CREAS recebe entre 30 e 40 pessoas que buscam café da manhã, banho e atendimento psicossocial

HISTÓRICO MARCADO POR CRIMES

O dado mais alarmante diz respeito ao histórico criminal dos abordados. Apenas quatro pessoas (13%) não possuíam registros de ocorrências policiais. Os demais 26 apresentavam múltiplas passagens pela polícia, algumas com mais de 20 registros por furto e outros crimes patrimoniais.

As ocorrências mais comuns foram: furto simples ou qualificado (19 pessoas), lesão corporal (14), ameaça (13), posse ou tráfico de entorpecentes (12 pessoas). Além disso, foram identificados casos de crimes ainda mais graves: estupro e estupro de vulnerável (4 indivíduos), homicídio doloso (1), receptação (2). Direção perigosa, importunação sexual, rixa e estelionato também constam entre os antecedentes de alguns abordados.

Uma pessoa foi presa por estar com mandado de prisão em aberto, por estupro de vulnerável, além de uma série de outros crimes que incluía estupro, ameaça, posse de entorpecente e lesão corporal. Também chama a atenção o caso de um indivíduo com 23 registros por furto qualificado e outros com mais de uma dezena de ocorrências diversas.

A operação identificou três estrangeiros: um chileno, uma uruguaia e um argentino, todos em situação de rua. Dois deles apresentavam ocorrências relacionadas à posse de drogas, e o chileno havia sido fichado por lesão corporal. A presença desses indivíduos reforça a complexidade do fenômeno da migração associada à situação de rua.

A maioria dos abordados era do sexo masculino (26 pessoas). Três mulheres e uma pessoa com nome social feminino também foram identificadas. Esta última possui passagens por roubo com lesões, tráfico e furtos.

SUPERAÇÃO DA SITUAÇÃO DE RUA

Em entrevista à reportagem do Jornal do Mar, a secretária municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Michele Brocca Duarte, e a assistente social Vanessa Benedet de Almeida, integrante da equipe da Secretaria, detalharam o funcionamento do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), os desafios enfrentados e os avanços conquistados. O CREAS é um dos principais equipamentos públicos responsáveis pelo atendimento à população em situação de rua no município.

O PAPEL DO CREAS

O CREAS atua na proteção social especial, destinada a pessoas e famílias que sofreram violações de direitos ou vivem em ciclos de violência. “A população em situação de rua está classificada para ser referenciada ao CREAS, mas ele não é um equipamento exclusivo para esse público”, explica a secretária Michele. Um dos serviços oferecidos é o Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), que mapeia territórios, identifica pessoas em vulnerabilidade e as encaminha para atendimentos de saúde, documentação e outros direitos.

Com o trabalho do CREAS, “só este ano, já tivemos mais de 10 casos de pessoas que conseguiram sair das ruas”

Diariamente, o CREAS recebe entre 30 e 40 pessoas que buscam café da manhã, banho e atendimento psicossocial. “Em Torres, não temos Centro POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), então o CREAS acaba suprindo essa demanda”, afirma Michele. Mensalmente, cerca de 50 pessoas estão em acompanhamento individualizado, com planos para superação da situação de rua, incluindo acesso a documentação, emprego e saúde mental.

O perfil predominante é de homens adultos, com baixa escolaridade e vínculos familiares fragilizados. “Também atendemos mulheres, idosos e, raramente, crianças, quando há crianças, o caso exige intervenção imediata”, destaca a secretária municipal.

A abordagem do SEAS é humanizada e não coercitiva, diferentemente de ações policiais. “Nosso objetivo é construir vínculos para que essas pessoas aceitem ser encaminhadas aos serviços”, explica Vanessa. No entanto, a equipe enfrenta dificuldades: das quatro vagas para educadores sociais, apenas duas estão preenchidas, e uma está prestes a sair. “É um trabalho desafiante, que exige sensibilidade, e há alta rotatividade”, comenta.

CASOS DE SUCESSO

Sobre a superação da situação de rua. “Só este ano, já tivemos mais de 10 casos de pessoas que conseguiram sair das ruas”, relata a assistente social Vanessa. No entanto, Torres enfrenta obstáculos como o alto custo de vida, que dificulta a autonomia financeira dessas pessoas mesmo após conseguirem emprego.

Para casos de recusa de atendimento, comum entre pessoas com transtornos mentais graves, o CREAS articula com a rede de saúde, incluindo a possibilidade de internação compulsória quando necessário.

FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS E APOIO DA SOCIEDADE

Vanessa destaca a escassez de políticas habitacionais e a fraca articulação com a sociedade civil. “Algumas igrejas e grupos ajudam, mas a parceria com o poder público ainda é frágil”, diz. Ela também rebate estigmas: “Nem todos em situação de rua são usuários de drogas ou criminosos. Muitos estão ali por desilusões, conflitos familiares ou crises econômicas”.

Dados do IPEA mostram um aumento de 38% na população em situação de rua no Brasil entre 2019 e 2022. No RS, um estudo do Ministério Público destacou o Litoral Norte, incluindo Torres, Osório e Capão da Canoa, como uma das regiões com maior crescimento. “São mais de 200 pessoas no CadÚnico em situação de rua, mas essa população é dinâmica e não necessariamente está fixa no município”, pondera Vanessa.

A assistente social finaliza com um apelo: “A sociedade precisa entender que essas pessoas merecem dignidade. O preconceito dificulta nosso trabalho e a busca delas por uma vida melhor”. Ela reforça que o CREAS continuará lutando por mais estrutura e políticas públicas, mas ressalta: “Enquanto houver falta de investimento, a superação da situação de rua seguirá sendo um desafio”.