
Funcionários denunciam cortes de benefícios e falta de materiais para o trabalho, enquanto hospital enfrenta crise financeira e desconfiança sobre a gestão.
O Hospital Nossa Senhora dos Navegantes (HNSN), referência para a população de Torres e municípios vizinhos, enfrenta críticas internas que tem gerado preocupação entre seus funcionários e a comunidade local. A gestão hospitalar foi assumida em janeiro de 2024 pelo Instituto Brasileiro de Saúde, Ensino, Pesquisa e Extensão para o Desenvolvimento Humano (IBSaúde) e, inicialmente, foi recebida com esperança de uma melhor administração e valorização dos profissionais.
No entanto, pouco mais de um ano e meio após o início da gestão do IBSaúde, um grupo de 109 funcionários, entre profissionais administrativos, enfermeiros e médicos, se uniu para expor uma série de problemas, que vão desde a perda de benefícios adquiridos até a precarização das condições de trabalho e do atendimento hospitalar. Eles também denunciam casos de perseguição e relatam medo de represálias, o que contribui para um ambiente de tensão constante dentro da instituição.
Na última sexta-feira, 4 de julho, dois representantes do grupo procuraram a Central de Jornalismo do Grupo Maristela para realizar denúncias, acompanhado de um pedido de apoio para que a situação chegasse ao conhecimento da população, já que, segundo eles, não têm encontrado abertura junto à administração do hospital. As denúncias não foram assinadas, e os representantes solicitaram o sigilo das fontes, o que foi respeitado pela equipe de jornalismo.
O HOSPITAL

Único hospital em um raio de 50 quilômetros, o HNSN é referência em saúde para toda a microrregião do Litoral Norte gaúcho. Com 76 leitos, a unidade realiza cerca de 400 internações e 300 cirurgias por mês, atendendo principalmente pacientes do SUS.
A estrutura oferece serviços ambulatoriais em diversas especialidades, como cirurgia geral, urologia, ortopedia e vascular, além de exames em radiologia, laboratório, ultrassonografia, mamografia e tomografia. O hospital também mantém plantões 24h em clínica médica, pediatria, obstetrícia e ortopedia, com centro cirúrgico completo e internações especializadas, incluindo UTI, AVC clínico e saúde mental adulta.
Além de atender os sete municípios de referência, Torres, Arroio do Sal, Três Cachoeiras, Três Forquilhas, Dom Pedro de Alcântara, Morrinhos do Sul e Mampituba, o HNSN também recebe pacientes de toda a região dos Bons Ventos e Belas Praias. No total, a instituição presta serviços a uma população estimada em mais de 383 mil pessoas.
PERDA DE BENEFÍCIOS
O hospital é um dos principais serviços de saúde da região, atendendo não apenas Torres, mas também municípios vizinhos, o que faz dele um equipamento essencial para a população local. No entanto, segundo relatos de funcionários, a relação entre ele e a atual administração tem se deteriorado de forma acelerada. Um funcionário, que preferiu não se identificar por medo de perder o emprego, desabafou.
“Estamos há muitos anos aqui, alguns de nós dedicaram a vida ao hospital, mas hoje nos sentimos desvalorizados, como se não importássemos. Perder benefícios que conquistamos ao longo do tempo é um golpe duro para a nossa motivação.”
Segundo os relatos, na transição entre a gestão anterior, da Associação Educadora São Carlos (AESC) e o Instituto IBSaúde, os funcionários assinaram um Termo de Aditamento ao Contrato de Trabalho, no dia 1º de março de 2024, que garantia a manutenção dos benefícios já adquiridos. Entre eles estavam a cobertura do plano de saúde Unimed, que era oferecida gratuitamente aos titulares, sendo que apenas dependentes pagavam uma taxa, e o recebimento da cesta básica como prêmio por assiduidade, que ajudava financeiramente muitos trabalhadores.
No entanto, em abril de 2025, a administração realizou uma reunião geral, anunciada como uma conversa sobre os “benefícios dos funcionários”. Na prática, porém, o encontro, conduzido por um membro da Secretaria Executiva do IBSaúde e acompanhado por um advogado, gerou, segundo os funcionários, um clima de intimidação.
“Pensamos que seriam boas notícias, mas nos informaram que a cesta básica seria retirada ou teria um desconto de R$ 100 na folha de pagamento. E o plano de saúde, que antes era gratuito para nós, agora passaria a ser cobrado. Isso foi um choque para todos”, relata outro funcionário, igualmente anônimo.
O desconto de R$ 100 proposto para a cesta básica, um valor superior ao preço de mercado em Torres, cerca de R$ 50, gerou revolta e sensação de injustiça.
“Nos disseram que quem não assinasse um termo no RH desistindo do benefício teria o desconto automaticamente. É um absurdo, porque a cesta era um prêmio, uma conquista nossa, e agora querem cobrar por ela”, acrescenta a mesma fonte. Para agravar, um comunicado interno da direção afirmou, de forma contestada pelos funcionários, que todos haviam aceitado essas mudanças para evitar demissões, o que, segundo o coletivo de funcionários, não corresponde à realidade.
Outro ponto delicado é o plano de saúde Unimed. Com o hospital inadimplente junto à operadora desde dezembro de 2024, os dependentes dos funcionários estão sem acesso aos serviços, sem conseguir realizar exames ou consultas.
“É um direito nosso, mas a empresa simplesmente deixou de pagar e quem sofre somos nós, os trabalhadores”, lamenta uma técnica em enfermagem.
Além disso, os funcionários consideram que os salários são depositados fora do prazo legal e, quando o quinto dia útil cai em um sábado, a administração não o considera como dia útil, o que amplia o atraso. A falta do pagamento do dissídio coletivo referente a maio de 2025 é outra pendência grave.
“O piso salarial adicional, que ganhávamos como resultado de uma ação judicial, foi reduzido sem explicação de R$ 930 para cerca de R$ 600, e isso varia todo mês”, denuncia outro colaborador.
Um problema que traz indignação é a bitributação sobre o valor do piso, com descontos repetidos de INSS, FGTS e imposto de renda tanto na folha principal quanto na folha adicional. “Estamos pagando duas vezes por direitos que já conquistamos. É uma ilegalidade que pesa no nosso orçamento”, reclama uma técnica de enfermagem.
CONDIÇÕES DE TRABALHO
Além das questões financeiras, os funcionários apontam para a falta de condições mínimas para o trabalho. A rouparia do hospital está frequentemente vazia, não há lençóis suficientes para pacientes acamados, muitos com escaras. “Pacientes que precisam de troca constante de roupas de cama acabam ficando desassistidos. Isso coloca em risco a saúde deles e a nossa também”, alerta um enfermeiro.

Uma ex-funcionária do hospital, Deise Oliveira Clemente, que trabalhou por sete anos na instituição e foi demitida recentemente, relata ainda um ambiente de trabalho opressivo e perseguição.
“Depois da chegada do IBSaúde, comecei tratamento psiquiátrico. O salário nunca foi fixo, sempre variava e era menor do que antes. Tiraram a cesta básica, o convênio passou a ser pago, o café da manhã foi reduzido a quase nada. A gente tinha que se esconder para trocar de setor, porque a coordenação não permitia certas ações. Tínhamos que dormir no chão, levar cobertas de casa porque não deixavam pegar no hospital, e o local para descanso não comportava todos nós. Quem postava algo nas redes sociais sobre falta de medicação ou outras dificuldades era demitido ou punido. Foi um ambiente muito tóxico e opressor”, relata.
Paralelamente, o IBSaúde também enfrenta outro cenário delicado. A entidade foi alvo da Operação Autoclave, da Polícia Federal, que investiga supostas irregularidades em unidades de saúde do Rio Grande do Sul sob sua gestão ou que já estiveram sob sua responsabilidade. As apurações envolvem denúncias de desvio de recursos públicos, corrupção e formação de organização criminosa. Embora o presidente do instituto negue qualquer envolvimento direto e atribua os problemas a falhas administrativas, o histórico das investigações tem gerado desconfiança entre os funcionários e lançado dúvidas sobre a condução da gestão atual.
Além disso, o hospital enfrenta um déficit mensal estimado em R$ 3 milhões. De janeiro a junho deste ano, segundo a Câmara Municipal de Vereadores de Torres, as emendas destinadas ao Hospital Nossa Senhora dos Navegantes somam cerca de R$ 5 milhões. No entanto, esse valor ainda não foi creditado na conta da instituição. Em muitos casos, há uma demora de mais de um ano entre o anúncio da destinação e o efetivo repasse dos recursos, o que compromete a estabilidade financeira da unidade hospitalar.
Procurada pela reportagem do Jornal do Mar/Rádio Maristela, a assessoria de comunicação do IBSaúde enviou a seguinte nota oficial em resposta a todos os apontamentos apresentados em relatório do grupo de funcionários denunciantes:
NOTA OFICIAL IBSAÚDE/HNSN
“O Instituto IBSAÚDE e o Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, com profundo respeito pela população de Torres e região, reiteram o seu compromisso com a transparência, o diálogo e a melhoria contínua dos serviços prestados. As portas da Instituição estão permanentemente abertas a colaboradores, membros da comunidade e instituições para acolher sugestões, elogios, críticas ou denúncias que contribuam para o aprimoramento de suas atividades.
Cumpre esclarecer que o Instituto não se manifesta acerca de questões internas ou denúncias anônimas por meio das redes sociais ou da imprensa. Entendemos que tais canais, quando utilizados de forma não oficial e sem identificação clara, comprometem a credibilidade e dificultam o adequado encaminhamento das demandas.
Reafirmamos que toda e qualquer manifestação, construtiva ou crítica, deve ser direcionada, de forma responsável e identificada, ao Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) ou à Ouvidoria do Hospital Nossa Senhora dos Navegantes (HNSN). Todas as comunicações recebidas são avaliadas com seriedade e respondidas dentro dos prazos institucionais.
Atenciosamente,
A Direção – Instituto IBSAÚDE”
REESTABELER CONFIANÇA
O Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, que já foi referência pela qualidade do atendimento e pela dedicação de seus profissionais, atravessa um período de tensão e fragilidade. Entre o sentimento de pertencimento de funcionários com décadas de serviço e os desafios financeiros atuais, a instituição vive um cenário de instabilidade.
Trabalhadores relatam cortes de benefícios, acúmulo de funções e atrasos salariais, o que tem gerado insegurança, desmotivação e impacto na qualidade do atendimento. Já a gestão, sob responsabilidade do Instituto Brasileiro de Saúde (IBSaúde), reconhece as dificuldades, mas afirma buscar soluções sustentáveis e manter o diálogo com a equipe.
Em meio à crise, a necessidade de reconstrução da confiança passa pelo respeito aos direitos dos profissionais, peças fundamentais para garantir um atendimento digno à população do Litoral Norte.