Celebração de 2 de novembro une fé, memória e tradição, reafirmando o sentido cristão da vida eterna e preservando a história dos cemitérios de Torres.

“Sepultar alguém que se ama é sempre um gesto de profunda dor, mesmo diante da certeza da ressurreição, pois em Cristo a morte foi vencida”, afirma Frei Roberto Gomes Simões, OFM, capelão do Cemitério Jardim da Paz, em Porto Alegre. Integrante da Ordem dos Frades Menores, Frei Roberto atua na Pastoral das Exéquias, um trabalho pastoral da Paróquia Santa Clara, no bairro Lomba do Pinheiro, na Capital. A iniciativa conta também com o Grupo de Reflexão Além da Vida, que oferece apoio às pessoas enlutadas, unindo acompanhamento psicológico, conduzido pelo psicólogo Isaque Bueno, e reflexão teológica orientada pelo próprio frei.
Em sua avaliação, “o Dia de Finados deve ser um momento de agradecimento pela vida de nossos entes queridos, ser um dia de saudade, sim, jamais de tristeza sem esperança, pois a dor deve ser suavizada pelo amor.”
Esse diálogo entre sofrimento e fé é um dos eixos centrais da celebração de 2 de novembro, data em que a Igreja Católica convida os fiéis a revisitar a memória dos que partiram, à luz da certeza da vida eterna. Nesse contexto, compreender as raízes históricas, as práticas litúrgicas e a presença desse momento em âmbito local, como em Torres, é essencial para fortalecer o sentido comunitário e pastoral da data.
DA BÍBLIA AOS PRIMEIROS CEMITÉRIOS

O registro bíblico apresenta o primeiro ato formal de sepultamento quando Abraão adquiriu o campo de Efrom, em Macpela, para sepultar sua esposa Sara. “Assim Abraão comprou o campo de Efrom… para posse de sepultura.” (Gênesis 23,17-20). Esse episódio, além de registrar uma terra destinada exclusivamente ao sepultamento familiar, pode ser considerado o precedente do conceito de cemitério.
Na tradição católica, a prática de rezar pelos mortos remonta ao cristianismo primitivo, quando mártires e fiéis eram recordados nos locais de sepulcro, como nas catacumbas de Roma. Em Torres, os cemitérios antigos, como o situado na Praia da Itapeva, ativo entre 1770/80 e 1826, e o “da Capela”, ativo desde 1826, evidenciam como a memória dos falecidos está entrelaçada à trajetória local, envolvendo pioneiros, imigrantes, crianças vítimas de doenças e comunidades inteiras. Esses registros assumem valor histórico, cultural e pastoral.
A INSTITUCIONALIZAÇÃO LITÚRGICA
A data de 2 de novembro foi fixada no âmbito monástico da Europa medieval. Em 998, o abade Odilo de Cluny, da abadia beneditina de Cluny, na França, instituiu para seus monges e para todos os fiéis a obrigatoriedade anual de rezar pelos mortos nesse dia. A partir do século XII, a prática se estendeu à Igreja Católica inteira como a “Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos”.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) orienta que “o Dia de Finados não é para ser um dia de tristeza ou de desânimo, mas um dia de saudade, para lembrarmos com carinho daqueles que já se foram e rezarmos por eles”.
A celebração articula três dimensões interligadas: a vivência humana da perda, a certeza cristã da ressurreição e a comunhão entre os que vivem, os que estão em processo de purificação (o Purgatório) e os que já se encontram na glória celeste. Conforme destaca o padre José Adalberto Salvini, especialista no tema, as exéquias são “celebrações da esperança”, pois “a morte não tem poder sobre nós, porque Cristo destruiu o poder da morte e do pecado”.
SEPULTAR OU CREMAR
A Instrução Ad Resurgendum cum Christo de 25 de outubro de 2016, da Congregação para a Doutrina da Fé, reafirma que a sepultura tradicional permanece como a forma preferencial de destinação dos corpos, por expressar maior respeito e apreço pelos falecidos. No entanto, a cremação é permitida, desde que não seja escolhida por razões contrárias à fé cristã, como a negação da ressurreição dos mortos.
As cinzas dos fiéis devem ser depositadas em lugares sagrados, como cemitérios, igrejas ou espaços liturgicamente designados, não sendo permitida sua dispersão no ar, na terra, no mar ou sua guarda comum em residências. Em 2023, a Santa Sé acrescentou que, em casos excepcionais e com autorização eclesiástica, uma pequena parte das cinzas pode ser conservada em local significativo para o falecido, desde que o restante permaneça em ambiente sagrado.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), conforme documentos e orientações divulgados, reconhece que a cremação, desde que não motivada por razões contrárias à fé cristã, pode ser admitida, sempre privilegiando o sepultamento como forma ordinária. Estimula que as cinzas sejam depositadas em lugar sagrado, como cemitério ou igreja, ou ainda em espaço especialmente dedicado determinado pela autoridade eclesiástica, como um columbário paroquial, e não dispersas no ar, na água ou mantidas em domicílio.
Nesse sentido, está em estudo a implantação de columbários nas Paróquias Nossa Senhora de Lourdes, em Capão da Canoa, e São Domingos, em Torres. Segundo o pároco de Torres, Leonir Alves, para atender fiéis que optam pela cremação e desejam honrar sua memória dentro da comunidade, se busca conhecer melhor e analisar a viabilidade de um columbário paroquial. O mais próximo da região indicado para esse tipo de espaço, hoje, encontra-se no Santuário de Içara.
OS CEMITÉRIOS DE TORRES

O primeiro cemitério de Torres, conforme registros do historiador e jornalista Nelson Adams Filho, situava-se na Itapeva, área onde a cidade começou a se formar. O período de registros abrange de 1770/80 a 1826. Embora o local exato ainda não tenha sido identificado, há registros de sepultamentos de famílias pioneiras, como os Porto, Martins e Rocha.
O segundo cemitério, conhecido como “da Capela”, foi ativado em 1826 e esteve em funcionamento até cerca de 1880. Ali foram sepultados, entre outros, o Alferes Manoel Ferreira Porto e imigrantes alemães. Atualmente, o local passa por prospecção arqueológica.
Outros cemitérios, como o “do Morro do Farol” e o “das Areias”, também integraram a história local. Este último, ativo até o início do século XX, acabou coberto pelas dunas. O Cemitério do Morro do Farol, por sua vez, funcionou até 1960, quando deu lugar ao atual Cemitério do Campo Bonito, que hoje concentra a maior parte dos sepultamentos do município.

O Campo Bonito possui mais de 4.800 sepulturas e 425 capelas, reunindo memórias de várias gerações. Outros cinco cemitérios comunitários complementam a rede local: São Brás, Nossa Senhora Aparecida (Jacaré), Nossa Senhora de Fátima (Barro Cortado), Nossa Senhora da Glória (Pirataba) e o Luterano da Vila Lottermann.
Segundo o secretário municipal de Administração e Atendimento ao Cidadão, Jacó Miguel Zeferino, a Prefeitura tem priorizado melhorias estruturais.
“Está em fase de licitação um projeto para cerca de 160 gavetas, aproveitando o espaço vertical do Cemitério do Campo Bonito. Sabemos da necessidade de ampliação e também da manutenção e embelezamento ao longo do ano.”
Com a proximidade do Dia de Finados, o abastecimento de água foi reforçado. “Nas semanas próximas a data de Finados, aumenta a demanda por limpeza dos túmulos. As caixas-d’água foram ampliadas, e mais dois a três mil litros foram adicionados para atender a comunidade.”
SAUDADE QUE SE CONVERTE EM MISSÃO
Frei Roberto ressalta que “a oração usada na despedida de um ente querido é sempre um momento difícil, mas pode suavizar a dor e trazer esperança a partir da fé”. Nesse sentido, o Dia de Finados convida a comunidade a não apenas recordar, mas também renovar o compromisso com o serviço, a solidariedade e a vida.
Para a CNBB, “celebrar os nossos falecidos é também celebrar a dor de uma saudade. E, para nós, cristãos, a vida não é tirada, mas transformada”, afirma dom Jaime Spengler, presidente da entidade.
Assim, o Dia de Finados, em Torres, deixa de ser apenas um rito de luto para se tornar um gesto coletivo de esperança e gratidão, onde fé, história e comunidade se unem na certeza de que a vida, em Cristo, é sempre renovada.