Home EspecialVenda de terrenos em Passo de Torres/SC causa prejuízos aos compradores

Venda de terrenos em Passo de Torres/SC causa prejuízos aos compradores

por Melissa Maciel

Cerca de 50 lotes no loteamento Praia Azul possuem matrículas sobrepostas devido à localização em área de matrícula mais antiga, gerando prejuízos para seus compradores.

Vamos considerar a seguinte situação hipotética envolvendo um consumidor. Suponha que esse consumidor tenha adquirido um terreno e tenha seguido todos os procedimentos padrão: realizou uma análise minuciosa da matrícula sem identificar qualquer restrição, obteve todas as certidões necessárias que atestam a integridade e legalidade do negócio, pagou o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) sem problemas junto ao Município, e efetuou com sucesso a transferência e averbação do imóvel no Registro de Imóveis. Até aqui, todos os passos foram seguidos de forma correta e sem contratempos aparentes.

No entanto, ao submeter o pedido de licença para construir na área adquirida, o consumidor é surpreendido com a recusa por parte da Prefeitura, que alega a existência de um bloqueio judicial devido a um litígio envolvendo o lote, decorrente de uma suposta sobreposição de matrículas.

A situação, infelizmente não é fictícia, é real, atual e diz respeito a várias pessoas que adquiriram terrenos em uma área específica na Rua Jânio Quadros, localizada em Passo de Torres, no Sul catarinense. Esta área abriga aproximadamente 51 lotes aprovados, cada um com sua matrícula individualizada, no Loteamento Praia Azul. Entretanto, a proprietária vizinha, cuja área é rural, alega que esses terrenos estão sobrepostos à sua propriedade, conforme consta em sua matrícula mais antiga. Consequentemente, ela reivindica o direito sobre essa faixa de terra, contestando os proprietários das matrículas individualizadas.

O QUE É ÁREA SOPREPOSTA?

Trata-se simplesmente de um erro de medição. Os terrenos das matrículas individuais não possuem sua própria base territorial, mas estão localizados sobre outra área, pertencente a outra matrícula.

De acordo com as normas do direito notarial, na situação de sobreposição de áreas, prevalece a matrícula mais antiga. Em outras palavras, se a perícia comprovar que os terrenos estão sobre a área vizinha, eles serão anulados e os proprietários perderão seus terrenos.

Nesse caso, eles terão o direito apenas de buscar indenização junto ao loteador, sendo o Município solidariamente responsável e subsidiário. Isso significa que se o loteador não possuir mais recursos para arcar com as indenizações, o Município será responsável por pagá-las.

Foto: Arquivo Pessoal | Há cerca de 50 lotes no loteamento com matrículas sobrepostas

SERIA UM GOLPE?

Uma das proprietárias afetadas pela recusa da Prefeitura Municipal de Passo de Torres em permitir a construção em seu terreno é Cristina Freitas da Rosa de Christo, advogada e uma das compradoras prejudicadas. Ela tem ponderado sobre a possível origem desse impasse, questionando se se trata de uma “desorganização e uma série de erros” ou se há indícios de um golpe, possivelmente envolvendo até mesmo agentes públicos.

“As matrículas individualizadas foram concedidas com base nas aprovações e autorizações obtidas da Prefeitura de Passo de Torres. Se for comprovada, por meio de perícia, a existência de sobreposição de áreas, fica evidente a Responsabilidade Objetiva do Município. Isso significa que o município terá a obrigação de indenizar as vítimas devido à sua negligência ao aprovar o loteamento de maneira irregular e com erro na medição de área”, conforme explicação da advogada prejudicada no caso.

Segundo Cristina, desde 2012, terceiros de “boa-fé” vêm adquirindo lotes dessa área, desde que as matrículas foram emitidas. No entanto, muitos desses compradores acabam descobrindo o problema quando são confrontados por representantes da proprietária da área rural vizinha. Esse fato faz com que percam a confiança na boa fé da transação e repassem os lotes para novos compradores desavisados, sem considerar qualquer constrangimento ético. Esse comportamento é uma das razões pelas quais ainda não houve nenhuma construção em nenhum dos 51 lotes que fazem divisa com a área rural.

DENÚNCIA

Decidida a interromper esse ciclo de má-fé, Cristina optou por buscar justiça e expor publicamente o problema. Ela procurou a Central de Jornalismo da Rádio Maristela e o Jornal do Mar para denunciar a irregularidade que persiste há anos: a venda de terrenos com matrículas sobrepostas.

O problema parece ser tão complexo que até mesmo advogados, incluindo Cristina, e alguns corretores de imóveis da cidade, foram enganados. Após uma investigação mais aprofundada dos processos relacionados ao loteador e ao Loteamento Praia Azul, bem como dos litígios envolvendo a proprietária da área rural, Cristina afirma ter descoberto evidências conclusivas de que a Prefeitura de Passo de Torres estava ciente do problema há muito tempo.

Mesmo assim, o Município teria aprovado o loteamento e a emissão das matrículas individualizadas. Desde 2012, a prefeitura emite regularmente várias guias de Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) referentes aos lotes e cobra regularmente o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) sobre os mesmos. A prefeitura só alerta as vítimas do golpe sobre o grave problema quando elas tentam obter licenças para construção, as quais são negadas sem qualquer cerimônia.

Foto: Léo Selau | Compradores desses lotes acabam descobrindo o problema e repassam os terrenos para pessoas desavisadas

DE QUEM É A POSSE?

A proprietária da área rural adjacente ao loteamento alega ter sido a vencedora em um litígio anterior sobre o mesmo assunto (Processo 069010063712000). Ela afirma que, por meio do protocolo número 0958, datado de 28/08/2013, solicitou que o Município tomasse medidas para regularizar o problema de sobreposição. Além disso, ela acusa a Prefeitura de ter intencionalmente extraviado o processo administrativo, acusando os servidores públicos de participação em suposta fraude, conforme os autos do processo 5002517-59.2023.8.24.0189, evento 1, INIC1.

Cristina menciona ter encontrado evidências de que a Prefeitura de Passo de Torres estava ciente do caso em questão em um processo descoberto no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), sob o número 0300192-65.2019.8.24.0189/SC. Neste processo, um comprador de terreno no mesmo loteamento da Praia Azul relatou problemas de infraestrutura.

O Ministério Público (MP-SC) emitiu parecer indicando que não se tratava apenas de questões de infraestrutura, deixando claro o conhecimento prévio sobre a existência do problema de sobreposição entre as áreas vizinhas. O parecer também afirmava que o Município já tinha ciência da necessidade de regularizar a situação. Este parecer do MP-SC foi protocolado em 26/02/2021, nesta ação, onde Município foi réu e foi condenado por ter aprovado o Loteamento da Praia Azul com irregularidades.

POSIÇÃO DA PREFEITURA

Foto: Léo Selau | A Prefeitura afirmou, em nota, não ter conhecimento da área em litígio para emitir o ITBI ou cobrar o IPTU

Esta reportagem obteve esclarecimentos em resposta aos questionamentos direcionados à Secretaria de Administração e Finanças, por intermédio do Departamento de Arrecadação e Fiscalização – Tributos da Prefeitura de Passo de Torres. Um dos questionamentos abordou a capacidade do município de emitir o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) para propriedades envolvidas em litígio. Em sua resposta, o Município esclareceu que o lançamento tributário do ITBI é passivo por declaração, não sendo realizado de forma ativa, ou seja, por iniciativa própria da administração.

Destacou-se ainda que a declaração do contribuinte é considerada de boa-fé, conforme estabelecido no tema repetitivo 1113 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Além disso, ressaltou-se que não há revisão ou obstáculo para o lançamento tributário além da declaração, desde que os documentos apresentados sejam autênticos e não indiquem restrições. No caso de documentação com restrições, é necessária a ciência do comprador para emitir a guia antes da averbação, a fim de resolver tais restrições, como penhoras ou alienações fiduciárias já solucionadas.

Em relação ao questionamento sobre se a Prefeitura tinha conhecimento da venda de uma área litigiosa, o Município explicou que, no processo administrativo de análise e emissão da guia de ITBI para a transferência de propriedades, são solicitados o contrato de compra e venda e/ou a autorização expressa do vendedor e seu cônjuge.

Além disso, é requisitada a matrícula atualizada do cartório de registro de imóveis para verificar possíveis restrições ou transferências anteriores não tributadas pelo município. Destacou-se que essa é uma prática padrão da administração municipal, visando à transparência, eficiência e respeito ao contribuinte.

No entanto, foi admitido que o setor de tributos foi informado pela procuradoria municipal sobre a sentença judicial que restringiu novas transferências para a área litigiosa a partir de 21/01/2024.

Entretanto, nos autos do processo 0300192-65.2019.8.24.0189/SC, há evidências, como o ofício 016/2021 emitido pelo Gabinete do Prefeito e endereçado ao Promotor de Justiça, referente ao Inquérito 01201900005658-0, que comprovam o conhecimento prévio da Prefeitura sobre o litígio de sobreposição. Isso demonstra que o Município não tomou medidas para bloquear a venda dos lotes, expondo terceiros de boa-fé a golpes. Cristina expressou sua frustração com essa situação, salientando que o Município emitiu guias de ITBI normalmente para a transferência dos lotes da área litigiosa.

Somente em 18/12/2023, a Prefeitura de Passo de Torres colocou um aviso de interdição, por ordem judicial, nas guias do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) dos lotes. Agora, ao pesquisar se os IPTUs estão em dia, os interessados poderão tomar conhecimento da existência desse bloqueio judicial, indicado pelo código do imóvel. Essa medida deveria ter sido adotada há anos.

“Cidadãos estão sendo vítimas de golpes envolvendo os lotes, devido à negligência do município, que não apenas aprovou um loteamento irregular, com diversos problemas de infraestrutura e até mesmo erros de medição, mas também perpetua esse erro ao não tomar nenhuma medida para resolvê-lo. A Prefeitura de Passo de Torres continua emitindo guias de ITBI normalmente, expondo novas vítimas a golpes e só as alertando quando protocolam pedidos de licença de construção”, denunciou Cristina.

Se você viveu uma situação semelhante ao comprar terrenos em Passo de Torres ou em outra cidade da região, nos relate sua história pelo e-mail: imprensa@jornaldomar.com.br