A trajetória de Bento e sua família revela os desafios enfrentados por pais de crianças autistas, desde o diagnóstico até a luta por inclusão e direitos.
“Desde um ano percebia que o Bento não fazia mais coisas que fazia antes; como dar tchau, mandar beijo, dançar. É como se ele tivesse ‘se apagando’. Foi como se eu tivesse perdido uma criança que idealizei durante toda a gestação e nos primeiros meses e anos de vida; lembro ainda de sentir a dor da incerteza: ‘ele vai falar?’, ‘vai ter amigos?’, ‘como as pessoas vão tratar ele?’, ‘será que ele vai ser feliz assim?’. Ainda carreguei um sentimento de culpa, e de que não estava preparada pra lidar com tudo isso e auxiliar ele.”
O depoimento emocionante é de Isadora Espíndola, psicopedagoga e mãe atípica de Bento, que hoje tem 8 anos. O relato traduz a angústia e a transformação que muitas famílias vivenciam ao receber o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA). A história da família Espíndola revela os desafios e as vitórias nessa jornada de aceitação e luta por direitos.
DIAGNÓSTICO QUE TRANSFORMA

Isadora e seu companheiro, Jodoel Cardoso, se conheceram durante a graduação em História, em Criciúma/SC. O namoro se tornou um compromisso ainda mais sério com a chegada de Bento. Apesar dos desafios, o casal não interrompeu os estudos e contou com o apoio fundamental dos pais de Isadora.
O diagnóstico de TEA veio quando Bento tinha dois anos e seis meses, após sinais claros de regressão no desenvolvimento. “Sempre ouvi que ele era ‘temperamental’ e que tinha ‘o tempo dele’. Mas, com o tempo, os movimentos repetitivos se intensificaram, e outros sintomas surgiram”, lembra a mãe.
Ao assistir uma reportagem na TV, o casal decidiu levá-lo a uma neuropediatra. O diagnóstico foi instantâneo. “Hoje, brincamos que o diagnóstico veio ‘pelo cheiro’. Ele entrou no consultório e a neuro disse: ‘Hmmm, autista!’. Ele tinha todos os sintomas do quadro, e não restaram dúvidas.”
A notícia veio com dor, mas também com uma nova missão para a família. “Sofremos por um dia e, no seguinte, já estávamos marcando as terapias”, conta.
ACESSO A TRATAMENTOS E DIREITOS
Em 2019, o maior desafio foi encontrar profissionais especializados, principalmente no Sistema Único de Saúde (SUS). Bento teve atendimento na APAE de Torres, mas o acesso à Análise do Comportamento Aplicada (ABA), um dos tratamentos mais recomendados, era escasso. A pandemia agravou ainda mais essa situação.
Diante das dificuldades, Isadora e Jodoel decidiram transformar a realidade. Criaram uma escola de reforço especializada no atendimento a crianças com transtornos de neurodesenvolvimento e iniciaram palestras e capacitações para professores e gestores.
“Quando o diagnóstico veio, nos perguntamos: como nunca olhamos para ESSA minoria? A partir disso, decidimos que essa seria a nossa causa de vida.”
DEFESA DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM TEA

A realidade de muitas famílias atípicas é marcada pela dificuldade de acesso a direitos, tratamentos e inclusão social. Em Torres, a Comissão em Defesa dos Direitos das Pessoas com Neurodivergência da OAB Subseção Torres tem desempenhado um papel essencial nesse suporte, promovendo informação, capacitação e defesa de direitos.
A presidente da Comissão, Mayara Pereira, explica que a iniciativa surgiu a partir do pedido de uma mãe atípica e advogada que, após receber um diagnóstico tardio da filha, percebeu a necessidade de maior conscientização sobre o autismo e a quebra de estigmas. Durante sua busca por informação e apoio, encontrou outra mãe atípica na mesma situação. Juntas, reuniram profissionais do direito que, mesmo sem ligação direta com o TEA, abraçaram a causa. Assim, em 3 de abril de 2024, a Comissão foi oficialmente formada.
Desde sua criação, a Comissão tem questionado o poder público sobre a ausência de programas voltados às pessoas com autismo e outras neurodivergências. Uma das primeiras ações foi cobrar a implementação do programa TEAcolhe e outras políticas de inclusão e acesso a tratamentos. Também se reuniram com o Ministério Público para tratar de temas como capacitismo, bullying e direitos.
Com a percepção de que muitas famílias desconheciam seus direitos, a Comissão lançou, em outubro de 2024, o projeto “Incluir e Informar”. O objetivo foi orientar famílias sobre o acesso a tratamentos de saúde, educação e benefícios previdenciários. Foram realizadas palestras com especialistas nos temas de saúde, educação, direitos e família, além de atendimentos informativos gratuitos na sede da OAB Torres.
Em 2025, a Comissão ampliou seu escopo de atuação, passando a incluir não apenas o TEA (Transtorno do Espectro Autista), mas também outras condições neurodivergentes, como TDAH, TOC, AHSD, dislexia, dispraxia e Síndrome de Tourette. Além disso, foi instituída a Comissão em Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiências, abrangendo deficiências físicas, visuais, auditivas, intelectuais e múltiplas.
Março de 2025 foi marcado por uma perda significativa: o falecimento do filho de uma das mães fundadoras da Comissão. Sua história de luta e amor reforçou ainda mais o compromisso do grupo com a defesa dos direitos das crianças atípicas.
Para dar início ao mês de conscientização sobre o autismo, a Comissão promoverá, nesta sexta-feira (04), um fórum de debates no auditório da OAB Torres, das 19h às 22h, com transmissão online. O evento contará com a participação de especialistas como a neuropsicopedagoga Daniela Bittencourt, o presidente do COMPEDE Fabrício Tedesco, a psicóloga e orientadora educacional Fernanda Lacerda e a assistente social Michele Brocca. O objetivo é ampliar o debate sobre conscientização, tratamento, direitos e inclusão social das pessoas neurodivergentes.
DIAGNÓSTICO E TRATAMENTOS

A médica neuropediatra Bárbara Jost, da Clínica Brilhar de Torres, explicou que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição de neurodesenvolvimento caracterizada por dificuldades na comunicação, interesses restritos e comportamentos repetitivos. Segundo a especialista, crianças com autismo podem apresentar atraso na fala, dificuldades na intenção de comunicação, como falta de contato visual e atenção compartilhada, além de não participarem de brincadeiras simbólicas de forma funcional, mas sim de maneira repetitiva e desorganizada.
Além desses sinais, o transtorno pode estar associado a alterações sensoriais, como hiper ou hiporreatividade a estímulos sonoros e táteis, além de comportamentos hiperativos, baixa tolerância a frustrações e inflexibilidade cognitiva. O diagnóstico pode ser realizado a partir dos 18 meses de idade, dependendo da manifestação dos sintomas em cada criança.
A médica ressalta que o autismo não é uma doença, mas sim um transtorno com causas multifatoriais, combinando fatores genéticos herdados dos pais com fatores ambientais, como complicações durante a gestação – depressão, pré-eclâmpsia, diabetes e parto prematuro são alguns dos fatores que podem aumentar o risco de desenvolvimento do TEA.
O diagnóstico é baseado na observação do comportamento da criança, uma vez que não há exames laboratoriais que possam confirmar a condição. Em casos de dúvidas, podem ser aplicados testes específicos e avaliações por profissionais especializados, como psicólogos e psicopedagogos.
A neuropediatra reforça a importância da intervenção precoce, destacando que, diante de uma suspeita de autismo, a criança deve iniciar o tratamento o quanto antes. Estudos científicos apontam que a abordagem mais eficaz para o tratamento do TEA é baseada na Análise do Comportamento Aplicada (ABA), associada a uma equipe interdisciplinar, que pode incluir fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, psicopedagogos e profissionais de psicomotricidade.
O tempo de tratamento e os especialistas envolvidos variam de acordo com as necessidades individuais de cada criança. Em alguns casos, pode ser necessário o uso de medicamentos para controle de hiperatividade, dificuldades na regulação emocional e distúrbios do sono, que são comuns entre crianças com TEA.
A participação ativa da família no processo terapêutico é fundamental para o sucesso do tratamento. A implementação de orientações da equipe em casa contribui para um aprendizado mais eficaz e o desenvolvimento de habilidades essenciais.
Por fim, a médica reforça que o autismo não tem cura, sendo uma condição permanente. O objetivo do tratamento é capacitar a criança para que, na vida adulta, possa alcançar o máximo de independência e inclusão na sociedade.
UMA SOCIEDADE MAIS INCLUSIVA
A história de Bento e sua família, assim como a atuação da OAB e dos profissionais de saúde, mostram que ainda há um longo caminho na luta por direitos e inclusão.
Isadora resume bem a mensagem que deseja transmitir: “Nossos filhos e filhas existem, têm direitos e sonhos. Precisamos enxergá-los como pessoas, não como anjos ou fardos. A empatia e a informação são os caminhos para uma sociedade mais justa.”
Cada família, independentemente do caminho que escolhe seguir – seja na terapia, na educação ou em qualquer outra área –, tem um papel fundamental na construção de um mundo mais inclusivo para seus filhos.
Pessoas com deficiência existem e devem ser reconhecidas em sua totalidade: com direitos, desejos, conquistas, erros e acertos, porque são humanas. E isso, acima de tudo, jamais pode ser esquecido.
